segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Linha de chegada


Sentada ao meu lado, no assento que dá para o corredor do ônibus, estava acomodada uma mulher. Ela segurava a própria bolsa e a mochila do colega que a acompanhava e estava em pé, ao seu lado. Eles conversavam animadamente. Conversavam tão alto, que era impossível não prestar atenção no papo dos dois.
O ônibus estava praticamente todo em silêncio. Só se ouvia as vozes deles. Arrisco dizer que metade dormia e metade fingia dormir para acompanhar a conversa. Eles falavam sobre um conhecido em comum. Falavam mal, muito mal. Riam, debochavam, mas tinham compaixão também. Malhavam, malhavam, malhavam, aí quando percebiam que tinham malhado demais e a consciência parecia pesar, mudavam o tom. Para a dupla, o tal cara era patético, exagerado e verdadeiramente digno de pena, tudo ao mesmo tempo.
O mais triste de acompanhar uma conversa de pessoas que não fazem a menor questão de deixá-la privada, é não poder emitir opinião. Só me restou guardar a minha na minha cabeça e promover lá dentro um debate cheio de argumentos brilhantes, de contestações, cheio de réplicas e tréplicas que sequer ousariam furar o bloqueio e entrar onde não foram chamados.
Os dois estavam nessa de descer a lenha no pobre coitado, até que o homem da mochila, de repente, travou. Não conseguia de jeito nenhum concluir um raciocínio. Faltava uma palavra que sintetizasse o que ele queria dizer. Sabe quando a gente não consegue ir adiante no papo, quando a gente empaca e não sossega até lembrar a palavra certa, aquela que faz a história ter mais sentido? Era isso. Ele estava angustiado, tenso. Parecia que a sua vida dependia daquela palavra que não vinha de jeito algum. O pior de tudo é que eu sabia o que ele queria dizer. Eu tinha a palavra na ponta da língua. Eu bem que tentei usar o poder da mente para fazê-lo lembrar, mas, infelizmente, não fui bem sucedida na minha tentativa.
A palavra que ele queria lembrar era “perseguido”. Não tenho a menor dúvida de que era essa mesmo e mostrarei o porquê de tanta certeza. Ele disse: “não, tudo bem que várias merdas aconteceram, mas eu acho que ele exagera. Ele tem muita pena de si mesmo, se acha meio… meio…”. A mulher chutou algumas:
- Vítima?
- Não.
- Coitado?
- Não.
- Sofrido?
- Não… Sabe quando a pessoa acha que tudo acontece com ela, só com ela, que os outros pegam no pé só dela, que o mundo conspira contra ela?
- Então! Se faz de vítima.
Não era. Ele queria “perseguido”. Ela não acertou e o papo continuou, porém com o homem da mochila desanimado, totalmente desinteressado. Ele tinha perdido o barato de seguir em frente. A mulher falava e ele só respondia“aham, aham”“sei…” e “pois é”. Não estava nem aí para o que ela dizia. Ele estava nitidamente tentando puxar pela memória a palavra fujona que o tinha deixado na mão.
Torço para que ele, em algum momento do dia, lembre de “perseguido”, mesmo que o papo sobre o cara patético, exagerado e digno de pena já não interesse tanto a colega do ônibus. Torço para que ele a diga em voz alta, esteja onde estiver, mesmo que pareça louco e seja incompreendido por falar palavras soltas por aí. É libertador. Esta é daquelas pequenas e bobas alegrias que fazem a gente ter um orgulho danado de si mesmo. É como completar uma prova de atletismo e esperar pelo lugar no pódio, pela medalha e pelos aplausos no final. Só não tem o pódio, a medalha e os aplausos no final, mas é igualzinho.

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