Morri, fui para o céu, voltei e agora estou aqui para contar a minha experiência de quase-morte. Não, não foi bem assim. Tô exagerando, claro, mas a sensação foi quase essa.
Certo dia, lá pelos anos 90, fui com a minha mãe até um laboratório, no Méier, tirar sangue para uns exames de rotina. Tirar sangue não é uma coisa simples para mim. Já tentei doar algumas vezes, mas sempre sou rejeitada por ter veias difíceis, incapazes de suportar as agulhonas dos hemorios da vida.
Há 20 anos, eu não encarei a tal agulhona, mas precisava tirar um tubinho de sangue. Naquela época – eu devia ter uns 14 anos –, tirar sangue era sinônimo de sofrimento. E lá fui eu, em jejum, suando frio e com o coração quase pulando para fora, tamanho era o meu desespero. Mas eu não tinha escolha. Não sairia dali sem encher aquele tubinho do pânico.
Entrei na salinha como quem vai ser torturado, sacrificado e sem direito a um último pedido. Fui morrendo de medo, mas fui. Sentei na cadeira e olhei para o lado oposto para tentar me poupar de um sofrimento ainda maior. Agulha cravada no braço e eu ali, tentando resistir enquanto podia. Senti a agulha sendo retirada e o alívio, instantaneamente, tomou conta de mim. Mas não durou muito. O tubo estava vazio e a enfermeira, muito pacientemente, disse que era difícil coletar o meu sangue porque tenho uma tal de “veia bailarina”, que não para quieta. Era só o que faltava eu ter uma veia aspirante ao Bolshoi… Ela tentou mais duas, três vezes e nada. Só na quarta, quando eu já estava prestes a entregar os pontos, que a mulher, enfim, conseguiu convencer a Baryshnikov a baixar a guarda e permitir que meu sangue cruzasse fronteira rumo ao desconhecido.
Era dezembro e fazia um calor dos infernos. Saímos do laboratório e eu, assim que pus os pés na rua, comecei a me sentir mal. Senti que poderia cair a qualquer momento. Lembro de ter me apoiado na minha mãe e de ouvi-la dizer algo como “vamos ali comer alguma coi…” e apaguei. Nada mais me lembro™.
A tal da experiência de quase-morte a que me referi no início do texto começa a partir daqui. Voltei do desmaio com a cabeça entre as pernas, sentada num banco, com um altar na minha frente, ouvindo louvores e com uma gente desconhecida me ladeando. Quem não teria certeza de que foi dessa para uma melhor num cenário desses? Nos primeiros segundos do pós-desmaio, eu não tinha a menor dúvida de que estava na fila para autenticar a papelada que me daria livre acesso ao Paraíso. Mas, não. Era só uma daquelas igrejinhas de galeria comercial que, à primeira vista, parecem tudo, menos igrejas. É capaz de uma pessoa entrar por engano, crente (com trocadilho) que está numa loja de produtos de informática, e sair com uma hora marcada numa sessão de descarrego.
Ergui a cabeça, minha mãe me ofereceu um copo d’água e eu, apesar de fraca, só queria sair dali. Mas não foi isso o que aconteceu… Alguém me pegou pelo braço, me levou para a frente da igreja e me sentou numa cadeira no altar. Ao meu lado, duas outras pessoas também estavam sentadas. Elas estavam numa espécie de transe e falavam línguas. A essa altura, o medo da agulha era nada perto do pavor de ser incorporada por uma entidade zombeteira.
Um homem pôs a mão na minha cabeça e pediu que eu fechasse meus olhos. Eu disse que já estava bem, que não precisava daquilo. Ele insistiu e eu, para me livrar logo daquilo, fechei apenas um dos olhos porque queria ficar bem acordada. A expressão “um olho no padre e outro na missa” nunca fez tanto sentido para mim quanto daquela vez.
Minha mãe agradeceu toda a igreja pelos cuidados prestados, me catou rapidamente pela mão, fizemos um “paz do Senhor” ligeiro e lá fomos nós fazer o nosso abençoado, sagrado, divino lanchinho, na santa paz de Deus. Amém? Amém!