Os personagens mais curiosos e mais ricos estão a bordo de algum transporte coletivo. Ouve-se de tudo durante uma viagem, por menor que ela seja. Basta ter uma audição bem apurada, a habilidade de identificar uma boa história e se deixar levar pelo que as pessoas contam por aí.
Há tempos, isso é o que eu mais gosto de fazer nas minhas idas e vindas do trabalho. Ouvir histórias de desconhecidos no trem, no metrô, nos ônibus comuns que ainda circulam e no BRT me distrai mais do que qualquer combinado de 5 amendoins (3 com casca e 2 sem) por R$2 que os vendedores ambulantes anunciam, a plenos pulmões, como o mais vantajoso e mais incrível passatempo de viagem. Profissionalizei o negócio de tal maneira, que ali mesmo tomo nota das frases mais impactantes para escrever depois.
Melhor do que pescar uma conversa aleatória, é ser selecionada para ouvir a história de alguém. Amo quando um bom contador me identifica como uma ouvinte atenciosa e, de uma estação à outra, fala para mim, só para mim, o que tem vontade. Mas isso é raro. Geralmente reconheço uma boa história enquanto ela é contada a outro passageiro (normalmente um amigo do contador) ou relatada ao celular, como é o caso da da Dorinha, que eu narrarei aqui, hoje.
Entrei no BRT e sentei ao lado de uma mulher que, muito indignada, conversava ao celular num tom elevado demais para aquela hora da manhã. Aquilo logo chamou a minha atenção, mas, embora pareça, não foi uma escolha minha sentar ali. Foi sorte mesmo. Aquele foi o único assento que restou. Qualquer passageiro que prefira aproveitar os 40 minutos que separam Madureira da Barra para tirar um cochilo, teria odiado aquilo. Eu não. Eu gosto mesmo é dessa gente que fala alto como se estivesse na sala de casa ou muito à vontade deitada num divã. Lá atrás, na minha infância, muito antes de eu optar por Comunicação, cogitei cursar Psicologia. Talvez isso explique alguma coisa.
Não, eu não sentei ao lado da Dorinha. Sentei ao lado de alguém que descia a lenha nela. Pelo que eu entendi, Dorinha não é fácil. Dorinha não é flor que se cheire. Dorinha é alguém bem difícil de lidar. A passageira ao lado, que eu chamarei de Lia, dizia barbaridades a respeito dela pelo celular. Disse, por exemplo, que Dorinha é uma mulher despeitada, nariz em pé e que não assume seus erros. Como não se agarrar a uma história que já de início se apresenta assim para mim?
Não demorou muito para eu descobrir que Lia conversava com a mãe – que eu chamarei aqui de Dona Fulana –, que mora em Recife e sofre na mão de Dorinha. “Era pra senhora ter uma nora abençoada, mamãe!”, disse Lia muito inconformada. Dorinha é tão mau-caráter, que teve a capacidade de falar mal da Leonora, que tanto a ajudou, para Letilson. Leonora é irmã de Lia e de Letilson, o marido da vilã da história.
Letilson me pareceu meio bunda-mole. Dorinha faz dele gato e sapato, o sacaneia de tudo quanto é jeito, mas o homem não se mexe. Prefere não se meter em confusão, mesmo que para isso tenha que ver a própria mãe cortar um dobrado na mão daquela nora má. Dorinha usou e abusou do bom coração de Dona Fulana e de Leonora, deitou na sopa enquanto pôde e hoje é só ingratidão. Dorinha é uma mulher ruim.
“Quando Leonora vier pra cá, aí é que eu quero ver!”. Lia disse também que a irmã tem uma luta danada com a filha Leandra, uma garota-problema que só dá dor de cabeça, e que Letilson nem a procura para saber se precisa de ajuda. Ele vive em função da mulher. Não sei se acho mais adequado dizer que Letilson só tem olhos para Dorinha ou que está cego de amor.
“Quem vai acudir a senhora aí?”, disse Lia preocupada com a mãe que, com a vinda definitiva de Leonora para o Rio, dividirá o quintal apenas com a sonsa da Dorinha e seu marido pau-mandado. “Ela não levantou ainda, não é?”, quis saber a minha colega de viagem. Acomodada, abusada, dissimulada e manipuladora profissional. Um psicólogo do “Casos de Família” descreveria a tal Dorinha mais ou menos assim.
Pelo que a Lia conversou com a Dona Fulana, Dorinha não sabe o que quer da vida, mas sabe muito bem como aproveitar o tempo livre que tem: pondo um contra o outro. Aquela ali adora um disse me disse, adora uma intriga. Foi, inclusive, o que ela tentou fazer ao falar absurdos da sogra para a Eliane, o que fez com que a amizade delas estremecesse. Por sorte, o mal-entendido foi esclarecido, Dona Fulana e Eliane voltaram às boas e eu, lamentavelmente, fiquei sem saber, em detalhes, a origem e o desfecho desse bafafá.
“O problema tá nela, mamãe, ela tá carregada, é uma derrotada”, disse Lia que lembrou também quão mal-agradecida é a cunhada, que sequer reconhece tudo o que já fizeram por ela. “Não fosse a gente, ela estaria presa até hoje”, completou. O que Dorinha deve ter aprontado de tão grave para ter ido parar na cadeia? Matou alguém? Roubou alguém? Desacatou alguma autoridade? Tudo é possível quando se trata de Dorinha. Só não entendi até agora o que ela fez para merecer a ajuda dos parentes de Letilson. Com esse histórico desavergonhado de maldades, eu já teria largado de mão há muito tempo! Seriam elas pessoas muito evoluídas que passam por cima do orgulho e estendem a mão a quem precisa, seja lá quem for? Vai saber…
Todo mundo tem um pé atrás com a Dorinha. “Todo mundo fala mal dela, até na frente dela”, disse. Dinalva e Ana Gláucia, que pelo pouco que eu ouvi são uma espécie de irmãs cajazeiras local, são duas dessas pessoas. Elas sabem muito bem do que a Dorinha é capaz. Segundo elas, a moça “tem o coração sujo”. As duas conhecem o passado de Dorinha de tal modo, que se resolvessem botar a boca no trombone, acabariam com a raça dela. Pelo menos foi isso o que a Lia garantiu para a Dona Fulana. Tenho para mim que Dinalva e Ana Gláucia querem mais é ver o circo pegando fogo.
Uma hora lá, a Lia se calou. Parecia ouvir o desabafo de Dona Fulana. Pouco depois, disse: “Deixa essa peste pra lá! Dá desprezo!” e voltou a descer o malho em Letilson que, cá entre nós, só pode ter o rabo preso com alguma coisa para aguentar calado tudo o que a mulher apronta.
Dona Nevinha, que eu não faço a menor ideia de quem seja exatamente nessa história toda, é a única pessoa a jogar no time de Dorinha, é quem a protege de alguma maneira. Só sei que elas duas são assim, ó, unha e carne. A malandra mulher de Letilson passa a tarde inteira na casa dela fazendo sabe lá Deus o quê. Dona Nevinha pode parecer inofensiva com esse nome fofinho, mas não me engana. Acho que elas são cúmplices e, mais cedo ou mais tarde, vão dar um golpe nessa família e sumir no mundo. Se bobear, Letilson está envolvido nesse plano e vai meter o pé também. Lia, Leonora e Dona Fulana que fiquem espertas.
Lia está longe, mas ajuda a mãe como pode. Ela se comprometeu a mandar mais dinheiro quando acabar de pagar o carro e garantiu que Leonora também vai chegar junto assim que puder. Elas querem mandar uma menina lá na casa de Dona Fulana para fazer o grosso, uma faxina geral de tempos em tempos, já que não podem contar com o irmão, muito menos com a mulher dele. Dorinha bem que poderia arregaçar as mangas e, vez ou outra, passar uma vassoura pela casa da sogra, mas todos nós já sabemos que esse não é o tipo de gentileza que ela é capaz de fazer.
“Ela acha que tá rica só por que ganhou vinte mil reais. Dá pra nada! Essa merreca vai acabar rapidinho”. Lia mandou essa e, para o meu desespero, desceu do ônibus ainda grudada no celular. Desceu e me privou do direito de saber a origem desse dinheiro. Ganhou no Bicho? Vendeu um rim de Letilson no Mercado Livre? Deu um golpe em alguém? Ganhou honestamente com o suor do trabalho? Jamais saberei.
Dorinha, se o destino quiser que este texto, de alguma maneira, chegue até você, não me leve a mal. Sou apenas um veículo da mensagem. Agora das duas, uma: ou você é mesmo uma malandra de marca maior e é odiada por meio Recife ou é uma pobre coitada injustamente perseguida pela família de Letilson. Abra o olho! Seu nome está na boca do povo, meu bem! Tome juízo, bote a mão na consciência e, mais do que qualquer coisa, acorde para cuspir, afinal de contas, vinte mil reais não faz de ninguém rico mesmo, não.